Chego aqui e
fico tão esquecida, como o pátio lúgubre nas traseiras pardas deste bairro
ignoto, escondido além da linha-férrea e do arvoredo, nesta terra de província!
Detrás das
vidraças, no rés-do-chão às escuras, adivinho o olhar, por vezes vigilante, por
vezes alheio, do mestre que me aguarda.
Vencendo a indecisão, abro a porta de entrada e, com um cumprimento contido à figura sisuda que assoma ao fundo do corredor frio, deponho o saco no cadeirão vetusto a cheirar a bafio.
Vencendo a indecisão, abro a porta de entrada e, com um cumprimento contido à figura sisuda que assoma ao fundo do corredor frio, deponho o saco no cadeirão vetusto a cheirar a bafio.
Vou a falar
com os meus botões: absorta em considerações, tenho, de me preparar, por
inconciliável que seja, para as surpresas da hora que se segue!
Nunca sei bem
com que contar, que me reserva a aula, como me vou sair... Tanto acho que desisto,
como me digo que não posso levar o mestre à letra!
Há aulas em que, como na escola, o que ele diz entra por um ouvido e sai pelo outro! Senão, nunca
mais voltava!...
Quem esquece, não envelhece, lá reza um adágio!
E ao final de
cada lição, inexplicavelmente, a reverência nobre e atenta com que o mestre me
despede, lá o absolve sempre de tudo...
Empertigado,
o mestre senta-se no cadeirão do corredor, calçando os sapatos maleáveis e
gastos. Não diz palavra; penso que pensa
que não é preciso...
Também não me apoquenta. Ao menos, o silêncio não mente
facilmente! Mas o mestre tem muitos quês, muitos senãos, os seus dias sim, e dias não.
É imperioso e dado a caprichos; diz que
é da profissão, ou talvez da nação...
Já tenho
dado com ele ali, sentado no sofá, o seu olhar escuro, deposto algures no
passado.
Assim, de queixo apoiado na mão, perde um pouco a soberba e, na sua calvície
e sombra, parece mais velho, resignado, algo cansado; não sei se de mim, do presente
ou futuro, ou simplesmente, de tudo... Talvez por isso, ou devido à escuridão, tenha
levado tempo a detectá-lo nos cartazes e fotos de outrora que são o único
adorno, o único cuidado posto no corredor inóspito!
Entro no
vestiário farrusco e fecho a porta atrás de mim, o mestre desce os degraus para
a aula...
Enquanto me apronto, irrompe da sala ao lado uma música
rodopiante, estonteante e inconfundivelmente russa. Com ela, o presto tamborilar
de passos no chão, sugere os desenvoltos arabescos da coreografia
desenfreada que o mestre enceta... só falta arejar o rançoso corredor com
infindáveis piruetas!
Naqueles singulares
momentos mágicos de bravura, decerto que a escola, o bairro, a cidade e tudo o
que a transcende, se transforma num enorme cenário cintilante...
Está no centro
do universo e o tempo revolve até aos dias em que o mestre bailava entre
estrelas cadentes, nos palcos do mundo!
A menos que a arte lhe dê mais pernas,
com tantos passos que bicam o soalho, decerto que o solista tem companhia secreta!...
Desconfio assim que, feitos com ele, por fátuos momentos, os demais bailarinos dos cartazes do
corredor se escapam para o palco!
Intrigada,
abro sorrateiramente, a porta do vestiário, a ver se apanho uma fracção do
efêmero espetáculo, ao menos de esguelha, através do espelho...
Mas qual quê!...
Mal transponho o vão da porta, tudo se esfuma, fica tudo parado e quedo, como
se nunca tivesse sido!
O corredor tumular e os astutos bailarinos, imperturbáveis
como marionetas, lá no quadro, nunca se descaem!
O mestre aguarda-me quedo, altivo
e impassível como sempre, no canto da sala, de costas para o espelho e mão
pousada na barra.
Não sei se, sob o nariz torcido, lhe desvendo afinal, um trejeito
de humor no lábio embicado...
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