As manhãs de neblina são mansas, densas, macias
como a névoa. Nestas horas alvas e solitárias, pintadas de fresco, estreio a
praia em surdina. Sem sol não há sombra; sem calor, as cores são de veludo, são
águas-fortes, em manhãs de aguarela. Tudo é claro, plácido. E se há nevoeiro
não há vento, cheira a iodo, a maresia. É como se o mundo parasse e, reduzido à
sua essência, se oferecesse a quem o quiser contemplar.
Sob o imóvel toldo de riscas, sentada na areia
fria, envolta num camisolão de linha, leio, jogo distraidamente ao prego,
distingo vozes de crianças. Puseram bandeira amarela, à cautela, mas o mar liso
e prateado ondula suavemente entre o areal e o céu baixo, ao som rouco da ronca
que perpassa a neblina. Os salpicos do brando rebentar das ondas borrifam o ar
de espuma e sal.
Silhuetas avançam hesitantes pela passadeira, os
passos morrem-lhes na areia. Quem vem à praia em tais manhãs tem de a amar. É que ninguém se pode
ver, nem mostrar. Ninguém se vem pavonear. As vistas são curtas, descansa-se o
olhar. Está-se ali, para estar!
O nevoeiro suspende o tempo, o trajecto do sol, subtrai-nos
uma parcela do mundo. A névoa é brancura, silêncio, abstinência, espaço para
pensar. São horas desertas, íntimas e veladas, sem ser preciso esconder nada. E
uma manhã de praia assim, tem a alvura e a acústica da neve, abafando e
abrandando, como uma manta de veludo, o burburinho urbano.
Mas o sol quer romper; o dia amorna e um véu
amarelo perpassa já o nevoeiro; enterro os pés na areia tépida e selo,
resignada, o meu segredo. Ao fim de algum tempo, a neblina dissipa-se, apagando
consigo os traços daquelas insuspeitas horas incautas na manhã calada.
O sol radia, como se tivesse sido assim todo o
dia. A praia desperta, anima-se e, sob o céu azul, marulha a crista
efervescente das ondas. Na passadeira, em vez de meros vultos, reconhecem-se
agora caras e pessoas. Banheiros armam toldos, chegam avós com netos
irrequietos pela mão, mães a empurrar carrinhos de bebé, mesmo empregadas, enfastiadas,
carregadas de ceiras e geleiras; famílias abancam na esplanada do café,
espanholada em algazarra, a juventude reúne-se em grupos maciços à beira-mar. Iça-se
a bandeira verde e banhistas precipitam-se para o mar sereno; faz calor e
enquanto o mar está calmo, é de aproveitar.
“Pôs-se um belo dia de praia, quem diria…” dizem
os recém-chegados. Para norte, a silhueta serra, vista límpida até ao cabo,
mais para cá o forte de Buarcos, a baía e o casario colorido. Para sul, nos
penedos do paredão, divisam-se pescadores quietos, diante de canas tão imóveis
como o farol listrado e quedo. Botes salva-vidas ondulam no mar para lá da
rebentação; o extenso esplendor do areal é um quadro sem mistérios: pôs-se um
dia de postal, é certo, mas foi-se a magia!
À tarde, não corre uma aragem. As horas avançam, o
calor aperta, a areia escalda, o mar avoluma-se na maré-cheia. As ondas ganham
força, e arremessam-se para a areia com o capricho de prima-donas, ataviadas de
longas algas, prostrando-se perante a bandeira inânime, ainda verde, pendente
do mastro.
Mães prudentes esperam a acalmia, para o semicupio
de fugida, ao sair enchem baldes de água para os bebés corados que as esperam
nos toldos. Banhistas receosos arredam-se, os mais audazes mergulham furando as
vagas crescidas, tentando carreiras. Uns perdem os calções, outros os pés, outros
enrolam-se no turbilhão dos remoinhos e são devolvidos zonzos, a cambalear,
impiedosamente cuspidos para a areia.
Na passadeira gera-se novo vaivém de espanhóis que
recolhem a casa para a sesta, quando os portugueses mais dorminhocos chegam e outros
regressam já após o almoço em casa. É como no render da guarda, como se os
horários fossem propositadamente desfasados, para que os dois povos andem
desencontrados e para que assim, também nunca encham a praia.
O meu verão é uma feliz constante, cada dia de
praia é um verão. Ora embrulhada em camisolas, nas ensonadas manhãs de neblina, ora
vendo chegar retardatários e partir quem se cansa, ora fruindo o calor
irradiante da areia. São horas a fio à beira-mar, banhos e mergulhos, conversas
efémeras, ler e dormitar. Contemplo tempestades no mar, lado a lado com as
gaivotas, assistindo aos tormentos dos cargueiros e traineiras nas marés vivas,
aos vagalhões arremessando-se contra o farol, galgando o molhe, lavando a
praia.
Na maré baixa, os toldos já
fechados e amarrados, reconquisto a praia vazia; sobram apenas alguns
resistentes a jogar ao prego, brincando à beira-mar, banhando-se a desoras e
saindo da água a tiritar. Sacudo a areia, rumo a casa com vagar, a jogar à
apanhada com as sombras longas na passadeira; os últimos raios de sol brincam
entre os meus passos e refulgem no leito prateado do oceano infindo.